quarta-feira, 2 de março de 2011

No pêlo?


Modismo de fazer sexo "no pêlo" (sem proteção) se espalha entre os meninos e é preocupante, especialmente às vésperas do Carnaval

Conforme noticiamos, no domingo 27/2 realizamos a Campanha "Neste Carnaval, Vista-se!", distribuindo preservativos no último ensaio técnico de rua da Escola de Samba Porto da Pedra, em São Gonçalo, e também em duas boates gays daquela cidade. A escolha por esses pontos não foi aleatória: a ideia era mesmo fazer prevenção para além dos chamados "guetos". Optamos por distribuir camisinhas na rua, em ensaios de escolas de samba, porque o local, embora predominantemente heterossexual (mas com forte presença de pessoas LGBT), nos parece um espaço democrático, ao reunir heteros, homos e bis. E a ideia é mesmo fugir daquelas velhas ações de prevenção à porta de boates gays - afinal, não existe mais a noção de "grupo de risco" e estamos longe dos tempos do início da epidemia, em que Aids era praticamente sinônimo de homossexualidade. Fazendo prevenção somente junto ao público LGBT, estaríamos reforçando exatamente a ideia que nos custou anos para afastar: a de que só gays pegam Aids. Hoje, especialmente numa sociedade e cultura de identidades de gênero e sexuais tão difusas e fluidas como a nossa (onde existe até o termo "bofe que faz", usado pelos gays para se referir ao homem heterossexual que transa com gays e também onde existe a meinha, prática sexual na qual dois meninos fazem sexo, revezando-se na posição de ativo e passivo) pensamos a doença em relação a outras populações e sabemos que TODAS e TODOS devem usar, inclusive para, no caso das mulheres heterossexuais especialmente, prevenir uma possível gravidez. Além do fato, é claro, dos índices crescentes da Aids entre elas. Dados do Ministério da Saúde apontam para uma feminização da doença. Em 1986, eram 15 homens infectados para cada mulher, proporção que mudou para 15 homens para cada 10 mulheres, em 2010.

O MAIS IMPORTANTE, no entanto, é que a experiência nos trouxe alguns pontos sobre os quais vale a pena uma breve reflexão: o primeiro deles, já apontado em várias pesquisas, é que os gays são mais receptivos à oferta de preservativos e afirmam usá-los mais - talvez mesmo por terem sido a população inicialmente mais atingida e por terem carregado tal estigma por anos. A resposta deste segmento à doença tem sido o cuidado, tanto que não tivemos qualquer problema na distribuição nas duas boates.

No entanto, a distribuição realizada no Carnaval de rua nos levou a um segundo ponto, que se contrapõe ao primeiro: a reserva de muitos rapazes e moças (principalmente delas) em aceitar a tira de preservativos que oferecíamos a cada indivíduo. Sabemos que sexualidade de certa forma ainda é um tabu, uma marca que pode ser usada para classificardiscriminar ou hierarquizar. Se uma moça aceita o preservativo, por exemplo, ela pode ser classificada e discriminada como puta. Os rapazes, por sua vez, muitas vezes brincavam, insinuando que a tira de três preservativos era pouco em relação à sua performance sexual. Há um código ou uma mensagem subliminar nesta brincadeira de que ELES podem aceitar sem vergonha o preservativo - isto mostra o quanto são "pegadores" - enquanto ELAS não devem, pois a responsabilidade de carregar uma camisinha é DELES, além do fato, é claro, que uma mulher não deve mostrar publicamente estar exercendo sua sexualidade (principalmente se forem adolescentes, como é o caso). Aí entra o tabu da virgindade: ao aceitar a camisinha, elas mostram que já transam e que não são mais virgens. O rapaz, por sua vez, PODE e DEVE mostrar ter experiência. Aí entra a hierarquia sobre a qual falamos.

Sabemos que são bobagens, mas são códigos que ainda prevalecem em nossa sociedade. Nos deparamos também com atitudes de vergonha. Às vezes, um indivíduo passava uma vez por nós e não aceitava a camisinha. Depois, ao passar uma segunda ou terceira vez, muitas vezes acompanhado de um amigo mais desencanado, acabava aceitando. Temos que levar em conta, é claro, a sociedade da qual estamos falando. Afinal, São Gonçalo não é a zona sul da cidade do Rio de Janeiro ou um bairro boêmio como a Lapa, onde muito possivelmente a maior parte das pessoas aceitariam nossa oferta sem qualquer vergonha. Estamos falando de uma comunidade mais conservadora.

O terceiro ponto que gostaríamos aqui de destacar é o que MAIS NOS PREOCUPOU: havia uma explicação muito recorrente (e até motivo de orgulho) por parte dos rapazes que não aceitavam o preservativo (todos auto-identificados como heterossexuais), que era o fato de preferirem fazer sexo "no pêlo". Na linguagem popular, criada por um desses funks que a moçada ouve, "no pêlo" significa fazer sexo sem proteção. As razões para isso variavam, segundo as explicações que recebemos: perguntados por que preferiam não usar a camisinha, muitos diziam que era "mais gostoso", enquanto outros afirmavam que o preservativo não lhes conferia uma ereção desejável, e o pênis, segundo estes, ficava "meio barro, meio tijolo". A solução, assim, era abolir o uso da camisinha para que "o pau" ficasse mais duro - ou "mais tijolo". E podemos nos enganar ao pensar que estes jovens pertençam somente às camadas mais populares. Nota-se a "nova moda" entre jovens de todas as classes, segundo observamos.

Como sabemos que os índices de infecção da Aids e outras DSTs têm aumentado entre os jovens, principalmente entre mulheres, consideramos esta atitude preocupante, e que deve ser objeto de atenção por parte de gestores públicos, militantes e de futuras pesquisas acadêmicas. Fica aqui a nossa sugestão.

Well Castilhos  
jornalista, coordenador de Comunicação Social do CLAM/UER (http://www.clam.org.br/) e presidente do Grupo Liberdade LGBT de Sâo Gonçalo, grupo responsável pela Parada LGBT do município, entre outras ações

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