Depois de ter tramas elogiadas por criticar a homofobia e mostrar relacionamentos homossexuais com naturalidade, os autores da novela Insensato Coração, da Rede Globo, tiveram que recuar na abordagem de tais temas pela novela "não estar agradando a uma parte do público", segundo noticiou o jornal Folha de S.Paulo na semana passada.
De certo que a novela é dirigida a uma audiência não-segmentada (a um público amplo, e não só feito de gays), mas quem é este outro público que não suporta ver a felicidade de um casal (elemento central nas tramas das telenovelas) só por se tratar de um casal de pessoas do mesmo sexo? É melhor para essas pessoas ver a história de um outro casal da trama, na qual a mulher, como vingança, usa o homem que a fez sofrer como escravo sexual, sujeito a vários tipos de violência, só por se tratar de um casal heterossexual?
Também ouvi dizer que a novela estava sofrendo críticas por ser um tanto o quanto panfletária pela criminalização da homofobia. Ora, se alguns personagens gays da novela são a favor da criminalização da homofobia, é porque eles, como a trama mesmo tem mostrado, são as maiores vítimas dela. E, aliás, a criminalização da homofobia não é a única panfletagem da trama. Há também a crítica dos autores à corrupção de banqueiros e empresários, e vários personagens falam que é errado roubar o povo e que é certo que tais "ladrões" permaneçam na cadeia etc. Agora, falar em criminalização da homofobia não pode!
Sabemos o que está por trás disso tudo: a homofobia. A reação desta parcela conservadora do público é a mesma daqueles políticos pastores que se opõem a tudo que acham contra a moral e os bons costumes - incluindo o projeto de lei que propõe a criminalização da homofobia no país, a exemplo da lei que criminaliza o racismo. E reflete também o pensamento de que "é melhor ter um filho bandido do que um filho gay" e de que gays merecem apanhar. E, ao se dobrar a tais apelos, a emissora acaba por apoiar e contribuir com tais práticas. Lembro que em 1984, na novela Corpo a Corpo, o próprio Gilberto Braga denunciou o racismo quando a personagem de Zezé Motta (que se envolvia com um homem branco), era barrada na portaria de um edificio, numa cena em que o porteiro lhe pedia que usasse o elevador de serviço. Certamente, na época, muitos telespectadores pensavam como este porteiro (que negro deve usar o elevador de serviço) e que não concordavam com o romance da moça negra pobre com o rapaz rico branco. Mas a novela enfrentou o desafio, e anos depois, em 1989, foi aprovada a Lei Caó, que criminaliza o racismo, tornando-o crime inafiançável, punivel com prisão de até 5 anos e multa. Imaginem se a Globo tivesse se dobrado às criticas dos telespectadores contrários a esta abordagem, assim como fez com Insensato Coração.
Na verdade, não poderia ter sido escolhido título mais propício para esta novela, em momento mais oportuno: os insensatos corações não estão na trama, mas sim pertencem a esta fatia da audiência que assiste à novela e desaprova a felicidade de duas pessoas que se amam, só porque estas pertencem ao mesmo sexo. Insensatos Corações!
Clique aqui e leia a reportagem da Folha de São Paulo.
ABGLT envia carta à Globo
Depois da reportagem da Folha, a ABGLT (Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transexuais) enviou carta à direção da Globo solicitando à direção da emissora que prevalecesse a livre expressão artística dos autores da novela. Vejam abaixo a resposta da Central Globo de Comunicação:
"Escrevemos em atenção à mensagem encaminhada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – ABGLT referente à trama de personagens homossexuais na novela Insensato Coração.
Gostaríamos de registrar que somos ciosos da liberdade artística em nossas produções. Contudo ressaltamos que nossas telenovelas não são obras de terceiros. Pertencem a TV Globo, que contrata autores para escrever as suas histórias, com o desafio de leva ao ar a todos os brasileiros. Logo, não se pode falar em censura porque o texto é nosso.
Entendemos que a causa dessa trama ficcional é a diversidade e o respeito às diferenças, e não propriamente a homossexualidade ou a heterossexualidade, ou quaisquer outras formas de orientação individual. A ciência - incluindo Freud - reconhece que a sexualidade, com suas variantes éticas e morais - é baseada na singularidade. Não cabe fazer campanha em torno de preferências individuais.
Nossas tramas registram a afetividade e o preconceito, mas não cabe exaltação. Cabe, sim, combater a intolerância, o preconceito e a discriminação, o que temos estimulado cotidianamente inclusive por meio de campanhas.
Porém, a livre sensibilidade artística é a única medida possível para delinear a ousadia criativa, o que vale para toda e qualquer situação ou tema. Esse desafio torna-se ainda mais difícil quando se trata de respeitar uma audiência não-segmentada, múltipla em suas expectativas e preferências.
Permanecemos à disposição.
Central Globo de Comunicação"
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