No dia 17 de maio, um soldado de 19 anos foi estuprado por quatro colegas de farda enquanto limpava o banheiro de um quartel em Santa Maria, região central do Rio Grande do Sul. Levado à força para o dormitório pelos agressores, o rapaz foi abusado em rodízio e, conforme relatos, houve testemunhas. Encaminhado para um exame na própria guarnição, constatou-se apenas uma leve lesão. No entanto, o rapaz precisou ser internado – fato feito em sigilo - em um hospital militar, onde permaneceu por oito dias, inicialmente sem qualquer comunicação a sua família. Passados cinco dias, os familiares foram avisados e informados que o rapaz tinha sofrido um mal súbito. A versão contrastava com o estado de saúde do jovem. Os familiares pediram um exame no Instituto Médico Legal (IML), que atestou a ocorrência de abuso sexual. (fonte: SUL21, em http://sul21.com.br/jornal/)
Os desdobramentos posteriores, transcorridos mais de três meses desde o episódio, suscitam a suspeita de que há uma tentativa de descaracterizar e minimizar o fato grave: os advogados do jovem afirmam que não conseguem ter acesso ao inquérito que corre no Tribunal Militar, sob a alegação de que o processo demanda sigilo; o comando do Exército limita-se a declarações protocolares sobre o assunto, alegando que é preciso esperar o resultado do julgamento. O caso ganhou repercussão e a ministra dos Direitos Humanos do Brasil, Maria do Rosário, manifestou-se chocada com o fato e declarou que o caso deveria ser tratado pela Justiça Comum. A trama do episódio joga luz sobre uma realidade contraditória no Brasil: crimes sexuais são tratados de maneiras distintas pela Justiça Militar e pela Justiça Comum, apesar do recente avanço no Código Penal, que ampliou o escopo dos crimes de estupro.
A lei 12.015, de 2009, que introduziu mudanças no Código Penal comum, substituiu a denominação de “crimes contra os costumes” por “crime contra a dignidade sexual”. A modificação ampliou as possibilidades de definição de estupro e avançou sobre papéis de gênero que fundamentavam a legislação anterior. Na redação anterior, o artigo 213 tipificava o crime de estupro como conjunção carnal na qual o órgão sexual do homem penetrava, parcial ou totalmente, o órgão da mulher. Outro ato libidinoso ou sexual distinto à penetração genital da mulher por um homem era definido, conforme o artigo 214, como atentado violento ao pudor. Nesse sentido, somente o homem poderia ser o sujeito ativo, e a mulher, o sujeito passivo de um estupro. Conforme a alteração de 2009, os artigos foram unificados em um só e o estupro passou a configurar-se como uma forma de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. Dessa maneira, tanto as mulheres podem ser sujeitos ativos quanto os homens podem ser passivos, como o ocorrido no quartel de Santa Maria. Assim, o antigo estupro, que consistia apenas na introdução do pênis na vagina (conjunção carnal com mulher), agora implica também a prática de qualquer ato libidinoso (antigo crime de atentado violento ao pudor), cometido inclusive contra homens.
Segundo o juiz federal Roger Raupp Rios, professor de Direitos Humanos do Centro Universitário Ritter dos Reis (UNIRITTER), a alteração no Código Penal expressa uma referência contemporânea. “A noção de costumes, em si mesma, é conservadora e preocupa-se, em princípio, com a manutenção de uma determinada moral sexual majoritária e tradicional, ao passo que ‘dignidade sexual’ é uma expressão que pode ser relacionada com o reconhecimento do valor da sexualidade para a vida dos indivíduos e na sociedade em geral”, avalia o juiz.
No entanto, segundo Roger Raupp, o Código Penal comum e o Código Militar têm compreensões distintas sobre sexualidade humana e relações de gênero. Pelo texto militar, os conceitos antigos de estupro e de atentado violento ao pudor ainda coexistem, o que, do ponto de vista técnico, aponta para a competência do Tribunal Militar no caso de Santa Maria. “Pelo que fui informado, o crime referido foi praticado por militares, contra militar, no interior de estabelecimento militar, circunstância que fixa a competência na Justiça Militar”, observa o juiz.
Raupp afirma que é importante salientar tais diferenças sob uma perspectiva crítica. “Postular uma alteração da legislação penal militar, neste caso, parece-me atitude necessária, dado que as diferentes concepções em jogo importam em dar maior ou menor respeito aos direitos sexuais e combater desigualdades de gênero no Brasil”, acrescenta.
Tais desigualdades, observa o juiz, estavam refletidas na redação antiga do Código Penal comum, que estabelecia hierarquias simbólicas entre as ofensas sexuais, sendo a penetração do órgão sexual da mulher pelo do homem mais grave do que outros atos sexuais cometidos mediante violência ou ameaça.
“O texto atentava simultaneamente contra a dignidade da mulher, que era vista como objeto da regulação e como sujeito inferiorizado, e contra toda e qualquer forma de masculinidade que não se apresentasse conforme a masculinidade hegemônica”, afirma o juiz, concluindo que a nova interpretação contribui para quebrar paradigmas associados a papéis de gênero machistas e rígidos. Interpretação que, ausente no meio militar, reflete-se negativamente no caso de um jovem duplamente violado: pelos seus algozes e pela lei militar.
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