*Well Castilhos
No dia 11 de agosto, uma quinta-feira, teria sido a última audiência do caso Alexandre Ivo, na qual seriam ouvidos os suspeitos do assassinato do adolescente de São Gonçalo, ocorrido em junho de 2010. A audiência estava marcada para as 16h, mas neste horário a juiza Patricia Acioli, titular da 4ª Vara Criminal, estava ainda em juri com um caso - envolvendo policiais - que não terminaria tão cedo. Assim, ela achou melhor remarcar a audiência para setembro. Naquela mesma noite, depois de deixar o Forum, a juiza acabou sendo assassinada quando chegava em sua casa no bairro de Piratininga, região oceânica de Niterói.
Na tarde da última segunda-feira, 19 de setembro, finalmente aconteceu a audiência, já na presença do substituto de Patrícia, o juiz Fábio Uchoa (foto). Relatamos a seguir os principais momentos da audiência (que foi gravada), buscando, de forma imparcial, a fidelidade nos depoimentos prestados e evitando quaisquer juízos de valor em relação a qualquer um dos três personagens, sem pretender julgá-los ou condená-los. E assim como têm feito a maioria dos meios de comunicação na cobertura do caso, buscamos preferencialmente ouvir a mãe da vítima (a quem temos acompanhado e mantido contato desde o início), uma vez que preferimos que os depoimentos dos três acusados sejam prestados somente à Justiça.
Na audiência, os três acusados defenderam-se alegando de diferentes maneiras não terem cometido o crime. Um deles sugeriu incluir ao processo uma gravação que mostrava que seu carro estaria estacionado em frente a sua casa no momento do crime.
A defesa pediu que a camisa que o adolescente usava fosse analisada e comparada ao DNA dos rapazes, para constatar se havia suas marcas no tecido. O juiz alegou ser tarde para aquilo - o caso vem se arrastando por mais de um ano.
Os três acusados afirmaram não ter qualquer tipo de preconceito em relação a gays. Um deles - o Alan - chegou até mesmo a assumir na audiência uma relação homossexual anterior com um amigo de sua prima lésbica, uma das amigas de Alexandre presentes na reunião que comemorava a vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo sobre a Costa do Marfim, naquele fatídico 20 de junho, e onde os jovens foram agredidos pelos três rapazes horas antes do adolescente ser assassinado, segundo os laudos do processo.
Alan também confirmou uma frase dita por ele na época do inquérito policial a respeito do colega Eric: “Talvez ele tenha só tentado dar um pau nele [Alexandre Ivo] e exagerou na dose".
Os três também alegaram o quanto suas vidas mudaram após a acusação pelo crime: afirmaram estarem sofrendo ameaças de morte através de redes sociais e encontrando dificuldades para conseguir emprego. Um deles alegou estar sofrendo de problemas emocionais, precisando inclusive tomar remédios devido a problemas psicológicos.
Outro afirmou que ele, mais do que a mãe do menino morto, gostaria de saber quem cometeu o crime, agora que se vê diante da possibilidade de passar a vida toda preso.
Angélica Ivo (foto ao lado), mãe de Alexandre, estranha o fato de só agora algumas informações virem à tona. "Durante um ano, ele [o Alan] manteve em segredo sua experiência homossexual e se viu agora tendo que assumir, talvez porque seja vantajoso para ele assumir neste momento. Quanto aos outros dois, um se diz sem condições psicológicas, argumento geralmente usado por muitos que cometem crimes para se defender. E o outro se diz ameaçado. Ameaçado de quê? Agora é aguardar e confiar na Justiça", diz ela.
Espera-se agora o Ministério Público enviar parecer para o juiz Fábio Uchoa, que vai decidir se o caso vai a juri popular ou não.
A mulher por trás da juiza
Passado um mês, o covarde assassinato da juiza Patrícia Acioli - tão covarde quanto os crimes para os quais ela buscava justiça -, parece estar caminhando para um desfecho, com a prisão de três policias que a teriam matado em emboscada, segundo as últimas informações da polícia. No domingo (18/9), o programa Fantástico, da TV Globo, mostrou gravações que registram os últimos momentos de vida da juiza. A reportagem mostra como o crime já estava sendo planejado há um mês e que, naquela noite de 11 de agosto, ela estava sendo seguinda (por dois homens em uma moto) desde o momento em que deixou o Forum, sozinha. (Clique aqui para ver a reportagem). E na edição de terça-feira (27/9), o jornal O Globo noticia a prisão do ex-comandante do 7º Batalhão (Alcântara) como o mandante do assassinato da juíza (Clique aqui para ler a notícia).
Difícil de acreditar como "os caras" se sentem à vontade para cometer crimes, e na naturalidade com que eles os cometem. O que passava pela cabeça daqueles dois sujeitos de moto, sabendo que iam matar uma mulher por ela estar apenas cumprindo corretamente a sua profissão?
A hora (passava das 23h) em que a juiza Patrícia Acioli deixou o Forum de São Gonçalo naquela noite, distante cerca de quase 30 km de sua casa, já nos diz muito sobre ela. Eu a conheci há pouco mais de um ano, exatamente por conta do assassinato do adolescente Alexandre Ivo, caso que venho acompanhando, como militante pelos direitos humanos e como jornalista. Logo no início, quando o caso passou da Polícia para a Justiça, ela se dispôs a nos receber - eu, a mãe do menino assassinado e o advogado do Centro de Referência LGBT do Rio de Janeiro.
Logo de cara, vi os traços de uma personalidade forte e destemida conforme sua posição (e fama) lhe conferiam. Ela sempre teve fama de "peitar" gente de peso, fechar casas noturnas para manter a ordem na cidade, perseguir e mandar prender milicianos, bicheiros e policiais corruptos. Era como se eu estivesse diante de uma lenda viva.
Mas aquela mulher de longos cabelos negros também se distanciava da imagem de durona que lhe imputavam, ou mesmo da imagem de seriedade e sisudez a que todos somos remetidos ao lembrarmos de um juiz ou de uma juiza, com suas togas e martelos. Havia algo de diferente nela. Ela quebrava esse estereótipo. Era enérgica, mas não deixava de ser feminina.
Durante nosso primeiro encontro, ela nos disse que a Justiça deve sempre, e acima de tudo, ser feita, sob qualquer circunstância, por mais difícil que o caso pareça ser. Ao contar-lhe sobre o assassinato de um sobrinho meu que parecia ser um caso sem solução, ela disse que era justamente neste tipo de caso que se devia lutar por justiça, e que não havia caso sem solução. Perguntada por mim como ela enfrentava aquilo tudo todos os dias e se não tinha medo (ela já estava na tal "lista negra" de um bandido a quem condenara), ela apenas sorriu.
Outros traços presentes em sua personalidade (e em seu corpo) também sugeriam esse distanciamento da imagem do juiz/juiza tradicionais, segundo a ótica do imaginário social. Um desses traços era uma tatuagem que ela ostentava em uma das pernas, realçada pelos sapatos de saltos altos que usava, a qual reparei durante uma das audiências do caso Alexandre Ivo em que estive presente.
Em algumas dessas audiências ela também mostrava seu lado materno, ao levar sua filha mais nova para seu ambiente de trabalho. Sentada em sua mesa, inquirindo testemunhas e acusados, lendo processos, ela sempre arrumava tempo para ver o desenho que a menina lhe mostrava, com a atenção que toda a mãe dispensa a seus filhos.
Esses traços a igualavam a qualquer outra mulher. E ela era como qualquer outra mulher. Tanto que as fotos divulgadas após a sua morte a mostram na praia, sorrindo ao final de tarde de um dia ensolarado, ao invés de mostrá-la em uma mesa, escondida atrás de uma pilha de processos.
Quanto a seus namoros, divulgados pelos jornais após o crime, eram um direito seu, como o de qualquer outra mulher. Se ela namorava policiais ou carcereiros, para mim era supernatural, pois eram as pessoas que ela mais lidava no dia-a-dia de sua profissão. Ou uma juiza só pode se interessar por juizes ou advogados? Qual a importância de seus relacionamentos amorosos, quando estamos diante de um fato muito mais grave, que é o assassinato de uma autoridade por esta estar apenas cumprindo o seu papel? Isto me pareceu muito mais uma estratégia para desqualificá-la enquanto vítima, como normalmente se faz quando uma mulher é assassinada ou violentada. Aí vem logo frases do tipo: "Ela foi estuprada porque não soube se comportar. Viu o tamanho daquele vestido?". Ou, no caso da juiza, ouvi dizerem: "Também... o que ela tinha que se meter com essa gente?..."
Enfim, seus relacionamentos não deveriam nem ter vindo à tona, porque não interessam, mesmo que se tratasse de um crime passional. Afinal, nenhum homem tem o direito de matar uma mulher, tenha ela rompido o romance com ele, insistido em uma gravidez não desejada por ele ou mesmo tendo o traído. Acho que o Brasil como um todo - mesmo os chamados formadores de opinião - ainda tem muito a aprender quando o assunto é gênero e sexualidade.
*Washington (Well) Castilhos é jornalista, especialista em gênero e sexualidade, e presidente do Grupo Liberdade LGBT de São Gonçalo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário