quarta-feira, 5 de outubro de 2011

O homem-coruja (João Luiz de Souza é um grande exemplo!)

"Quando me dei conta de que não gostava de meninas, os livros já tinham me permitido uma inserção no mundo masculino: os garotos me respeitavam por eu ser um cara cabeça. Fui enfrentando a barra assim".

Ele atende por João do Corujão, e não é por menos: tem cara de coruja, usa óculos de coruja e nunca dorme, exceto sob efeito de um rodízio de calmantes da moda, de modo a não ficar dependente de nenhum
deles, ou, na pior das hipótese, criar uma dependência “democrática”. Às terçasfeiras, porém, é proibido dormir: é o dia sagrado do Corujão da Poesia, sarau que criou em 2004, quando a extinta livraria Letras & Expressões era point cultural do Leblon. Mudou-se para a sobreloja de um bar em Ipanema (o Conversa Fiada), onde continua atraindo tanto patricinhas quanto meninas do morro, pretos e brancos, vampiros e vítimas, sem falar nos famosos que já curaram ali suas insônias, de Ben Jor a Caetano, de Otto a Alaíde Costa.

Na última Flip, semanas atrás, João — que é assessor cultural da Universidade Salgado de Oliveira, que apoia suas iniciativas — protagonizou um desses “embates do bem” com o poeta Paulo Henriques Britto, que, desencantado, atacou os saraus como os que ele promove e disse qe os leitores de poesia no Brasil “não passam de 300”.

— Fiquei furioso. Força de expressão à parte, a última pesquisa “Retratos da leitura no Brasil”, de 2008, encomendada pelas editoras ao Ibope, mostrou que são quase 30 milhões os que citam poesia entre
suas preferências. Bem à frente de contos, autoajuda, biografias e História. O Corujão faz a sua parte: é a única vigília semanal do continente americano, aberta a poetas de todas as estaturas! — corrupia o homem-coruja num café de cinema onde é sempre visto em companhia de amigos.

Um herói que já nasceu insone

● Há 49 anos, João Luiz de Souza (todo herói tem uma identidade) veio à luz no município de São Gonçalo. Nasceu insone, segundo conta a gênese de sua transformação. Não dormia de jeito nenhum, problema
que sua mãe tentou resolver com Água de Melissa, famoso composto de outrora tido como calmante. A solução, à base de erva-cidreira, não solucionou nada: aos brados, Joãozinho queixava-se da noite vazia. Até que, lá pelos 4 anos de idade, lhe vieram uns livros ao berço.

— Meu pai era um operário da Rede Ferroviária Federal. Tudo lá em casa era na ponta do lápis. Coca-Cola, só no fim de semana. Mas nunca faltou comida, nem livro: minha mãe era babá do filho da minha madrinha, Florinda Miranda Ferreira, moradora do Leblon, que tinha uma bela biblioteca. Garantiu minha alfabetização e kits semanais de livros que acalmavam minhas noites e deixavam meus pais dormir.Ela me levava ao Caiçaras e dizia que eu podia brincar e entrar na piscina, mesmo que os outros negros como eu fossem funcionários do clube. Isso me deu muita coragem e fé.

Na contramão da cidade partida, essa ponte São Gonçalo-Leblon e a companhia dos livros fariam de João, já mais crescidinho, um contador de histórias mirim que entretinha as famílias do lado de lá e de cá. E também lhe deram alento, na puberdade, para enfrentar outros percalços:

— Quando me dei conta de que não gostava de meninas, os livros já tinham me permitido uma inserção no mundo masculino: os garotos me respeitavam por eu ser um cara cabeça. Fui enfrentando a barra assim. Também diante dos meus pais: sou filho do amor, mas é claro que, casados com mais de 30 anos, se pudessem escolher, prefeririam um filho hétero. Até fiquei de mal com meu pai um tempo por causa das minhas roupas coloridas. Mas ele tinha orgulho de minha vida escolar, dos parabéns que recebia, do fato de eu ter começado a lecionar aos 18 anos, formado em letras. Hoje, viúvo octogenário e namoradeiro, só me dá carinho.

Na roda-viva dos anos 80, João, por vias de amizades, caiu nas graças de Darcy Ribeiro e foi chamado para assessorar Cecília Conde, então coordenadora de animação cultural do programa dos Cieps. Acabou batizando o de número 45, implantado em São Gonçalo:

— Pedi a Darcy que fosse uma homenagem a Neruda. Ele subiu numa mesa e recitou versos do poeta, e o nome de Pablo está lá até hoje. João não escaparia, porém, da grande praga daquele tempo: a primeira onda de Aids constrangia o amor livre. João não contraiu a doença, mas perdeu muitos de seus amigos e boa parte de sua energia .

— Aquela vida sem freios, de a gente se amar nas festas, na praia, sob a Lua, toda a liberdade acabou. Eu era subsecretário de Cultura de São Gonçalo e me perdi, dei uma guinada forte para o álcool. Darcy segurou minha barra, me protegeu de verdade.

Em 1997, ano em que, por sinal, Darcy faleceu, veio a grande crise: fígado, estômago e pâncreas deram o aviso. Na mesa de cirurgia com boa chance de óbito, o médico, enquanto procurava localizar o foco de infecção que ameaçava sua vida, perguntou a João qual era seu maior prazer.

— Eu disse que era a poesia e ele pediu que eu recitasse, assim mesmo, de memória. Obedeci e segui versejando, até que uma estrofe terminou em grito de dor, apesar da anestesia. Escutei um aplauso: os alunos do lado de fora do aquário constatavam que a cabeça da infecção havia sido localizada. A cirurgia foi cancelada. Tive que conviver com uma bolsa de drenagem por meio ano.

Um verso: ‘João, não vai beber!’

● Durante esses seis meses, os amigos ligavam sempre ao anoitecer, naquele momento em que o lusco-fusco traz os pensamentos mais sombrios.

— Era um poema de uma nota só: “João, não vai beber! João, não vai beber! João, não vai beber!”. E não bebi.

Sem a birita, sem apreço por outras drogas — o que tampouco seria uma solução —, renovou o pacto com a leitura. Desde 1997, não põe uma gota de álcool na boca.

— Compreendi o que Baudelaire queria dizer: embriague-se de poesia, vinho ou virtude. Restou a poesia. A virtude não cabe a mim julgar.

Que julguem, então, os outros: de lá para cá, João criou o Corujão. Paralelamente, recolheu e distribuiu mais de 200 mil livros, criando uma rede informal de bibliotecas.

— Depois percebi que esse modelo se esgotou: as bibliotecas passaram a ter donos que queriam regular tudo. Sabe aquela coisa de microfísica do poder, de que Foucault falava? É verdade mesmo. Quem tem que montar biblioteca é o governo. Então, adotamos o modelo de Pontos de Libertação dos Livros: distribuímos
exemplares em juizados criminais, lares, UPAs, comunidades. A população vai lá, apanha o livro, devolve se quiser, se não quiser guarda, quando termina a gente manda mais. O cara está internado com uma crise de pressão alta, pega um livro, a pressão melhora, ele tem alta, leva o livro, ou piora, pega outro. Ninguém é
dono, o livro é livre.

Está na hora de partir. Num rompante, João, que não é autor, só leitor, recorda que, pela manhã, ou melhor, à tarde — pois não acorda antes de 14h —, abrira a janela para ver o céu e avistara um bougainville esfolhado, só com os cachos de flor. Ficou pensando que as pessoas, todas, tinham que ver aquilo, e lamentou: os que passam lá embaixo não têm, nem jamais terão, acesso a esse ângulo. ■ (Entrevista  publicada na Página Perfil da edição de 21 de julho do jornal O Globo)

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