
Por Victor Barroco
Todo dia vinte e quatro quando entrava na sala de aula, Roberto – então com 10 anos - era obrigado a ouvir os meninos cantarem “parabéns pra você”. Embora não tivesse despertado para sua tendência homossexual, ele sabia que era um deboche, principalmente porque a data era uma alusão ao número que, no jogo do bicho, representa o “veado”. Ele não chorava, mas ficava chateado e às vezes fugia da sala. “Todo mês era sempre a mesma coisa. Chegou uma época em que comecei a inventar mil desculpas para meus pais deixarem eu faltar nesse dia. Era um terror psicológico” – relata com mágoa o jornalista de 23 anos.
Infelizmente, Roberto não está sozinho e atos preconceituosos como esse, disfarçados de brincadeira, atingem uma infinidade de homossexuais, principalmente durante a infância. Em sua grande maioria, as vítimas são afeminadas, frágeis e estudaram em colégios como o do livro “O Ateneu”, de Raul Pompéia. Nesta fase da vida, ainda sem entender a própria existência para poder se defender, ouvem gracinhas de todo tipo, ainda que, por ingenuidade, afirmem gostar de meninas. E antes mesmo que possam questionar a própria sexualidade de maneira saudável, são praticamente arrancadas do armário sem sequer saber que estavam dentro de um. Mas que brincadeira é essa que inferniza tanto?
O que muitos não sabem, no entanto, é que essa “mera perturbação” têm nome. E científico: bullying, um fenômeno muitas vezes subestimado, mas que cresce e toma visibilidade em todo o mundo. A palavra é de origem inglesa e não tem expressão equivalente em português, embora possa ser entendida com uma intimidação física, verbal e até sexual. Os primeiros casos foram constatados na Noruega na década de 70. O que difere o bullying de uma simples brincadeira, no entanto, é o fato de ser um ato contínuo, sistemático, deixando, portanto, suas vítimas em estado de desespero. Pode ocorrer na escola, no ambiente de trabalho e em outros espaços de socialização, incluindo a internet. “Como é difícil traduzir, eu uso com os jovens a palavra 'sacanagem', porque está desrespeitando, sendo intolerante. Quem sofre é que dá a diferença entre brincadeira e bullying. Muitos são importunados e não ligam. A pior fase é entre a quinta e a oitava séries” - explica a psicóloga Cibele Fernandes, de 56 anos, que há pelo menos três décadas trabalha em projetos de conscientização e sexualidade em escolas do Rio. Em países como Estados Unidos, o assunto é motivo de preocupação: algumas vítimas se sentem tão acuadas que, para se livrar do mal, acabam causando outro maior ao promover massacres nas escolas, como o retratado no documentário “Tiros em Columbine” (2002). Vale lembrar que o autor do massacre, embora a imprensa e Michael Moore tenham omitido, sofria ataques por ser supostamente homossexual.
A vertente homofóbica

“Se casos de bullying acontecem muito mais do que imaginamos, uma parte significativa é de bullying homofóbico” – afirmou o psicólogo norte-americano James Sears, durante palestra no Instituto de Medicina Social da UERJ, no Rio de Janeiro. Segundo Sears, o bullying reforça papéis de gênero e a vítima normalmente exibe comportamento não convencional. “Sofre mais quem se apresenta como desviante em termos de sexualidade” – completa. Que o diga o escritor de novelas Aguinaldo Silva, de 65 anos. Ele relatou em seu blog que, aos 13 anos, quando estudava em uma escola tradicional do Recife, além de feminino, era pobre, feio e esquisito. “Acabei eleito como vítima preferencial de todas as brincadeiras malvadas (...) várias vezes desejei estar morto (...) não houve nada que não me jogassem: pedras, paus, sapatos, terra, cadernos, canetas, livros...” - revelou o escritor. Outra vítima famosa é Christopher Ciccone, 49 anos, irmão de Madonna, constantemente chamado de bicha na infância só porque tocava violino. Num dos trechos de sua biografia, ele conta o que teve de fazer para tentar acabar com o problema: “O melhor caminho é ignorar e fazer com que meus opressores tenham medo de mim (...) deixo meu cabelo crescer, compro um casaco verde-oliva que vai até meus joelhos, deixo o bigode crescer e entro na escola, observando, impassível” - descreve.
“Situação nos países é a mesma”, diz especialista
James Sears destacou ainda que pesquisas feitas em diferentes países obtiveram padrões e resultados parecidos. Ele falou sobre um estudo brasileiro com mais de 16 mil alunos, mostrando que um em quatro prefere não ter colegas homossexuais. A mesma pesquisa constatou que boa parte dos três mil professores entrevistados sustentava opinião parecida. “As estruturas organizacionais, as dinâmicas interpessoais e o currículo das escolas frequentemente reforçam o heterossexismo” – ressaltou Sears. A psicóloga Cibele Fernandes confirma que a maioria dos professores tem dificuldades em lidar com a questão da sexualidade. “Quando há um menino que lembra um veado, como o professor deve agir? No caso de um gordinho, ele já tem o discurso na ponta da língua.” – exemplifica. “Aos 17 anos quando me formei, o diretor da escola falou que não levava fé, mas eu estava corrigido” – relembra o estudante de direito Ediney, 22 anos. Ele diz ainda ter encarado a piada numa boa. Caso parecido teve o geógrafo Rafael, de 24 anos. “Numa briga, para apartar, a professora disse: 'gosto não se discute, se lamenta'. Na hora achei que me defendia. Anos depois é que fui perceber o que ela tinha dito” - relembra aos risos. Já Samir, de 18 anos, contou que em certa ocasião, a professora fez uma pergunta inusitada. “Ela questionou se havia algum 'mão virada' na sala. E todos apontaram para mim” – relata o tímido e traumatizado estudante de engenharia.
Cor e Gênero
“Jovens não brancos são mais vitimizados. Um negro homossexual prefere sofrer discriminação pela cor, pois uma agressão homofóbica o expõe como minoria e isto é problemático em termos de pertencimento a uma determinada comunidade” - diz James Sears. Ediney acha que o fato de ser negro ajudou a poupá-lo da maioria das gozações às quais outras crianças brancas efeminadas eram constantemente submetidas. “Não zoavam muito, porque era o único negro na sala e acho que tinham medo. Mas não superei isso. Não quero parecer que sou gay o tempo todo” – desabafa. Já a travesti cearense Lola, 35 anos, até hoje não conseguiu completar o ensino fundamental. Ela parou de estudar aos 17, quando então cursava a quinta série. Embora fosse alvo de piadas, ela largou os estudos por causa do trabalho. “Zoavam no início, mas passava. Eu não revidava, falava com a diretora e ela impunha respeito. Estava lá para estudar e não brincar. Nunca conversei com meus pais, até hoje não eles não sabem que sou assim” – revela. Para Sears, casos como o de Lola, são os piores. “Os jovens transgêneros sofrem agressão física em uma proporção de um terço a mais que lésbicas e gays e 90% deles se sentem inseguros em suas escolas” - esclarece. Em geral, as vítimas desenvolvem baixa auto-estima, baixo rendimento escolar, fobia social, ansiedade, pensamentos suicidas, entre outros sintomas. “Tive um carrasco por ano, da terceira até a oitava série. Eu tenho dificuldade de me expressar verbalmente. A minha voz é enrolada, falo muito rápido, tenho problema de dicção” - relata Samir, que preferiu conceder entrevista por e-mail. Apesar das humilhações, Roberto nunca sentiu a necessidade de abandonar a escola e se destacava pela inteligência. “Na hora da prova, eles sempre recorriam ao 'viadinho C-D-F'. Hoje, tenho dificuldade em começar uma comunicação. Quando você aceita que é gay, o que falam torna-se menos importante. Criança é um bicho cruel. Fui rejeitado a infância toda” - desabafa.
De quem é a culpa?
Os efeitos devastadores do bullying ocorrem em três níveis diferentes: Além daqueles que sofrem a ação direta, há os que olham a tudo passivamente e os próprios “torturadores”, que também são prejudicados, na medida em que seu comportamento já reflete alguma complexidade. Indo de encontro ao óbvio, a psicóloga Cibele Fernandes afirma que nem sempre a pior das vítimas é a explicitamente torturada. “As relações são bipolares. A vítima consente de alguma forma ao enviar sinais de fragilidade. Há crianças que jamais foram molestadas, porque souberam impor limites. Já outras se oferecem para ser sacaneadas. Mas isso não causa o bullying, apenas facilita” – explica. A travesti Laura, 23 anos, gaba-se de não ter sofrido nenhum tipo de tortura psicológica.“Não tenho traumas nem baixa auto-estima. Sempre fui agressiva. Quando tinha 14 anos, quebrei dois braços de um garoto. O pessoal me respeitava” – relata a travesti que na época era apenas um menino efeminado. “Ainda hoje sou tímido e tenho pouca auto-confiança. Saí da licenciatura, porque não queria trabalhar em escola. Não sei como reagiria vendo alguém sofrer” - diz o estudante de Letras, Rique, 23 anos. Segundo ele, é a primeira vez que fala com alguém sobre o assunto. Por medo ou timidez, as vítimas não costumam comentar o problema nem com os pais. Muitos permanecem trocando de colégio na esperança de resolver a situação desconfortável.
Educação que começa em casa
“A educação está na família. A escola é só um complemento. Quem dá o modelo é o pai e a mãe” - diz Cibele. Ela ressalta que o problema é fruto de uma sociedade cada vez mais consumista. “As pessoas trabalham e acho que isso rouba tempo de convivência entre pai e filho. Uma série de mudanças na ética em função do poder, do dinheiro está fazendo com que as crianças fiquem menos civilizadas” - alerta a especialista. “Eu sofria preconceito até dos pais de meus amigos. Um dia eles falaram que tinham sido proibidos de andar comigo, mas não obedeceram. Inclusive a mãe de um dos meninos, que era super afeminado e acho que só ela não enxergava, abominava o fato de eu tocar violino. E o pior é que, como pediatra, ela deveria ser uma pessoa esclarecida” - conta Rique.
Políticas de combate
Sears afirma que para fazer frente ao problema é necessário ainda que as autoridades estabeleçam políticas públicas que proíbam o bullying baseado na orientação sexual ou na identidade de gênero. “Elas são tão importantes quanto as práticas pedagógicas e materiais escolares que colocam em questão a heterodoxia sexual e de gênero”. Nos países europeus, como a Inglaterra, há organizações encarregadas de fazer pesquisas e trabalhos de conscientização nas escolas. A principal delas é a Stonewall e seus projetos, de uma maneira geral, têm obtido resultados satisfatórios. No Brasil, as políticas específicas voltadas para o problema ainda são incipientes, mas já começam a surgir. O militante gay Márcio Caetano, 39 anos, diz que o Grupo Arco-Íris do Rio de Janeiro foi uma das principais organizações a discutir a identidade LGBT na educação escolar do país. “Em 2005 desenvolvemos o projeto 'Rompendo Fronteiras e Discutindo a Diversidade Sexual na Escola', em parceria com o MEC. Estamos investindo em pesquisas com jovens em fase escolar, temos resultados expressivos que já foram apresentados em congressos científicos e outros eventos.
Superação
Apesar dos traumas e dificuldades em lidar com a questão, a maior parte dos entrevistados disse ter superado o problema. Aguinaldo Silva revela no blog ter guardado a história em segredo durante 52 anos. “Nunca fiz análise, para não ter que deitar num sofá e contá-la a um estranho” - relata o autor, dizendo ser feliz por não ser mais feio, pobre e muito menos esquisito. Já afeminado... “A verdade é que de vez em quando ainda desmunheco. Mas acho que isso é destino!” - brinca. Rique, que também nunca fez terapia, diz que o importante é se manifestar. “Se a pessoa que sofre não faz isso, vai ser difícil alguém tomar uma atitude. Amadureci muito antes dos outros” - constata. Já os que optaram pela ajuda de um terapeuta acreditam que o caminho é a auto-aceitação. “O processo é doloroso, mas necessário”- conta Samir. “Quando você se aceita, o que as pessoas falam torna-se menos importante. Na faculdade, nunca fui zoado” - complementa Roberto. A psicóloga Cibele Fernandes sugere ainda que para diminuir o preconceito é preciso também trabalhar desde cedo conceitos, como respeito, carinho e o cuidado com o corpo do outro. “Temos que entender que a prática do sexo compete somente a quem está envolvido. Dessa forma, haverá pessoas mais saudáveis do ponto de vista sexual” – conclui.
Nenhum comentário:
Postar um comentário