quarta-feira, 24 de março de 2010

De Vítor a Vitória


(Reportagem originalmente publicada na edição 587 de CartaCapital)

Aos 5 anos Richard teve o seu primeiro dia na escola católica em Delaware, Estados Unidos, onde meninos e meninas eram separados. Sem entender a convenção, insistia em ir para a fila das meninas. A incompreensão continuaria a vida toda, até que, já engenheiro mecânico pai de um filho e em eterno conflito de gênero, ouviu falar do famoso médico na Tailândia que transformava homens em mulheres. Ele fazia de pênis malquistos impecáveis vaginas – com padrões internacionais de cirurgia e preços dez vezes menores. Foi assim que, há seis anos, pelas mãos de um demiurgo pós-moderno de Bangcoc, nasceu Barbara Elizabeth Foster.

O que ele não sabia era por que a Tailândia, dentre tantos países com tradição médica? Parte da resposta: o estereótipo aqui pode ser levado em conta. ONGs estimam até 300 mil transexuais no país. Em uma escola de Bangcoc, 50 ladyboys – ou kathoeys,- meninos que vivem como meninas – estudam juntos. Outra, no interior, abriu um banheiro para o “terceiro gênero”. Concursos de beleza ganham a tevê. Eles/elas trabalham como cabeleireiros, caixas de banco, prostituem-se, estão em toda parte.

Como todos querem se parecer com mulheres, a demanda por cirurgias feminizadoras sustenta desde os anos 80 uma sólida indústria local. Mas a crise asiática de 1997 derrubou o poder de compra nacional, inclusive dos ladyboys, e freou o setor de cirurgia plástica. O governo então realizou uma campanha para fazer da Tailândia um destino do “turismo médico” – a troca de sexo pegou carona, transferindo sua oferta para os transexuais estrangeiros. Assim, com médicos com formação ocidental e preços asiáticos, o lugar mais liberal do mundo para os transexuais virou também o maior destino para a troca de sexo.

Aqui a cirurgia custa a metade do preço coreano e até dez vezes menos que nos EUA. A indústria da “cirurgia de redesignação sexual” (SRS, em inglês) é tão consolidada que hospitais privados vendem os serviços pela internet, com galerias de fotos e listas de preços (“aceita-se a maioria dos cartões de crédito”). Na clínica MTF, uma SRS custa de 8 mil a 13 mil dólares; a “feminização facial”, 5 mil; peito, 3 mil; redução do pomo de adão, 600. E é possível fazer um pacote: SRS, seios e pomo por 15 mil dólares.

Na agência de turismo médico Orchid Heart é possível fazer pesquisa on-line. O paciente clica na opção “mudança de homem para mulher” ou “de mulher para homem”, escolhe a data e os serviços (passagem aérea, hotel, intérprete e enfermeira) e, lido o contrato, o resultado da pesquisa chega em 24 horas. Em 2009, após escândalos com adolescentes castrados ao tentar virar ladyboys, o governo enrijeceu as regras. Mas não muito: a idade mínima agora é 18 anos, é preciso avaliação psiquiátrica e ter vivido como mulher por cinco anos. Como se prova isso é um mistério. As cifras do mercado continuam a girar.

Sentado ao lado de uma tela de computador com 30 pequenas fotos de vaginas feitas por ele, Preecha Tietranon corre o dedo indicador pelo lábio direito de uma de suas- obras para mostrar a perícia com que as torna quase reais. São 32 anos dedicados ao trabalho. Preecha afirma ter transformado quase 4 mil homens em mulheres. Um de seus pacientes tinha 54 anos, oitos filhos e veio com a mulher operar (ela tirou fotos). O mais velho era um senhor de 73 anos com três pontes de safena. Não à toa, Preecha é o papa da troca de sexo.

A técnica mais comum transforma o escroto nos lábios vaginais e o corpo e a pele do pênis em clitóris e vulva. “Mas melhor mesmo é a vagina de intestino”, diz Preecha, ao explicar que uma parte do intestino grosso é seccionada e vira o canal vaginal. Como o tecido naturalmente produz muco lubrificante, “temos ouvido mais elogios dos parceiros”.

Isso hoje. Na primeira SRS que fez, em 1978, na Universidade Chulalongkorn – onde formou mais de cem dentre os cirurgiões que fazem a fama do país –, a técnica era incipiente. “Na época, ninguém sabia fazer, então transexuais eram mutilados em operações com anestesia local. Era como castrar um boi.” Depois era preciso refazer a operação. Mas as coisas foram mudando, crescendo. Os transexuais tailandeses faziam a SRS e iam para o exterior.

“E os made in Thailand ficaram famosos lá fora”, diz Preecha. “Viu-se que o preço aqui é menor, os hospitais são bons, os médicos também. E ainda dá para passear depois.” Bom de marketing, há cinco anos ele realizou a primeira SRS transmitida ao vivo pela internet. Parece ter funcionado. Hoje ele estima que 1,5 mil estrangeiros façam SRS no Tailândia por ano. Em sua clínica, 100% são estrangeiros vindos dos EUA, da Austrália, da Europa. Brasileiros foram 30 até hoje.

O outro lado da indústria da produção de mulheres é a indústria do consumo. E se para os adoradores de travestis a Tailândia é destino turístico, o Nana Plaza é o centro. O prédio de três andares tomado por néon guarda dezenas de clubes de shows eróticos – quatro deles bem específicos: aqui, as mulheres de seios fartos e saltos altos nasceram homens. Ganham de 60 a 100 dólares por noite. Muitas juntam dinheiro para trocar de sexo.

Yo-yo tem 21 anos, 52 quilos e seios siliconados de 1,5 mil dólares. Ela pega as mãos de quem ouve e põe no nariz (ossudo), nas bochechas (agudas), nos ombros (rijos). “Ainda falta muito.” Yo-yo nasceu menino. Há dez anos toma hormônios. Há um trabalha no Nana Plaza. “Mais um ano com a gente e ela faz a cirurgia”, garante a cafetina. Yo-yo sorri. “Já guardei bastante. Depois vou viver na Europa.”

Na Tailândia, aos 10 anos a criança já sabe que tem o gênero errado. “A família compra roupas de menina, hormônios na farmácia, às vezes ajuda nas cirurgias”, diz a ativista transexual Hua Boonyapisomparn. “Mas, ao mesmo tempo que a sociedade força os transexuais a trocar de sexo, força também as mulheres a terem uma beleza anormal, e eles esquecem de pensar se precisam disso para ser felizes.”

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