quinta-feira, 19 de julho de 2012

A "cura" homossexual em debate

No artigo abaixo, Pedro Paulo Bicalho (Instituto de Psicologia/UFRJ) exalta o papel da resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia como dispositivo orientador de condutas éticas e instrumento de limites a práticas profissionais questionáveis e a possíveis iniciativas fundamentalistas, como o projeto de decreto legislativo de autoria do deputado federal João Campos (PSDB/GO) que busca sustar a aplicação da resolução e, com isso, autorizar psicólogos a "curar" homossexuais.


A ‘cura’ homossexual em debate: de que incômodo a Psicologia é hoje acusada?

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho
Professor do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Coordenador da Comissão Nacional de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia

A Psicologia surge nos meados do século XIX, inserida dentro de uma crise epistemológica que até hoje não está resolvida: afinal, a Psicologia é uma extensão da filosofia ou se tornaria independente, remetendo-se ao modelo das ciências físico-naturais? A formação dos psicólogos, a diversidade das correntes teóricas e os diferentes impasses que os profissionais dessa área enfrentam em sua profissão indicam as dificuldades e os paradigmas que emergem dessa indefinição.

Apesar das divergências teóricas e metodológicas presentes dentro da Psicologia, há um estatuto de poder conferido socialmente ao profissional pelo seu saber especializado. Assim, ao ser legitimado através de uma concepção de verdade, seu discurso produz subjetividades , saberes e reflexões sobre os mais diversos temas presentes em nossa contemporaneidade.

Pautada na crença de um binarismo entre “normal e patológico”, diversas práticas psicológicas surgiram como ferramentas de adaptação, ajustamento e correção do humano em seu contexto social. Tais práticas permitem colocar em análise determinadas formas de conhecimento e as raízes epistemológicas que permitem a instituição de uma concepção como paradigma de verdade. O conhecimento é construído como efeito de uma disputa discursiva que busca não apenas designar objetos, mas vai muito além, pois estabelece uma relação de distância e dominação através de relações de luta e de poder, onde os discursos atravessam e recriam objetos.

Pode-se, então, entender que a noção do que é normal não tem natureza e nem é universal, mas que é resultado histórico e pontual de condições sempre articuladas a relações de poder. Por ser conjuntural, o que se entende como desviante tem um caráter transitório, na medida em que está pautado em certo domínio de saberes que partem de relações de poder em um dado momento histórico de uma sociedade.

Dessa forma, faz-se necessário pensar sobre o modelo clínico tradicional no qual grande parte dos psicólogos está inserida, já que esses profissionais são responsáveis por criar técnicas diagnósticas com a finalidade de curar/prevenir comportamentos considerados desviantes e perigosos para o bem-estar social. Somos herdeiros, portanto, de todo esse processo de subjetivação, o que implica estarmos atentos aos pontos de interferência dessas construções analisadas no período histórico no qual estamos inseridos. A Psicologia, saber presente no contexto intelectual da contemporaneidade, não está isenta de práticas que possuem raízes no processo de transformação da sexualidade em um objeto do saber, acompanhado pela produção de uma técnica direcionada ao estudo e previsão desse objeto fixo apresentado.

A resolução 001/99 do Conselho Federal de Psicologia estabelece normas de conduta profissional para o psicólogo na abordagem da orientação sexual, visando garantir um posicionamento de acordo com os preceitos éticos da profissão e a fiel observância à promoção dos direitos humanos. Considera que a homossexualidade não constitui doença, desvio ou perversão, posto que diferentes modos de exercício da sexualidade fazem parte das possibilidades de existência humana. A resolução busca contribuir para o desaparecimento das discriminações em torno de práticas homoeróticas e proíbe os psicólogos de proporem qualquer tratamento ou ação a favor de uma ‘cura’, ou seja, práticas de patologização da homossexualidade.

Em 2012, ano em que a Psicologia brasileira comemora seus 50 anos de regulamentação, temos a resolução 001/99 como a que mais incomoda, sendo objeto de contestação judicial e alvo de audiências públicas direcionadas à sua suspensão. Que incômodo é este e o que está em jogo nas ditas contestações?

Indagando de outro modo, que faz desses modos de existências, representados pelas homossexualidades, tão perigosos que precisam ser constantemente repreendidos ou mesmo eliminados? Foucault (1999) discorre sobre a ‘biopolítica’ como uma série de tecnologias de poder para governo e controle da vida das populações: produção e delimitação dos modos de existir.As práticas de violência e discriminação são a eliminação de um corpo indisciplinado, que não segue as regras de gênero e os comportamentos sexuais. Mas também a regulação de uma população pretensamente ‘sadia’, livre daquelas práticas consideradas ‘indesejadas’, porque estas colocariam em risco toda sociedade. Além disso, as práticas de violência produzem o comportamento dentro das normas.

Dessa forma, podemos entender que a construção sócio-histórica da figura do homossexual como anormal que precisa ser corrigido e, por vezes, exterminado para a manutenção dos valores e do bem estar social, ainda se faz presente em nossa sociedade. Entretanto, segundo Baptista (1999), a violência destinada a sujeitos que tem suas sexualidades consideradas como ‘desviantes’ não se resume a agressões e assassinatos; de fato, tais manifestações só se tornam possíveis a partir de uma rede de discursos que os colocam como inferiores, vítimas de sua própria existência. Esses discursos e práticas são, então, ações de extermínios de subjetividades indesejadas.

Remetendo novamente a Foucault (2002) que entende o efeito dos discursos como práticas que designam objetos e os transformam dentro de disputas de saber-poder, é possível pensar que o significado das palavras matar e morte vão muito além da morte física, pois matar pode também significar desqualificar formas de agir, pensar e existir que podem potencialmente ser realizadas a partir de determinados discursos, em especial o psicológico.

A resolução 001/99, construída no âmbito da regulamentação da Psicologia a partir de um democrático debate com a categoria (e reafirmada em inúmeros Congressos Nacionais da Psicologia), rapidamente tornou-se referência dos poderes legislativo, judiciário e executivo, sendo citada como dispositivo orientador exemplar de garantia de direitos, servindo de referência para outras profissões, para instituições de ensino superior e de pesquisa.A resolução não serve, portanto, para punir psicólogos, somente. A resolução 001/99 afirma para toda a sociedade a posição oficial da psicologia brasileira e, assim, propõe práticas outras. Isto, sem dúvidas, incomoda. E que continuemos incomodando.

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