quarta-feira, 17 de outubro de 2012

A epidemia não acabou

por Well Castilhos

“A epidemia não acabou. Estabilização não basta”, ressalta o antropólogo Richard Parker, professor titular da Mailman School of Public Health da Universidade de Columbia, em Nova Iorque (EUA) e referência para os estudos sobre sexualidade e sobre o impacto causado pelo HIV/AIDS no Brasil nas últimas três décadas.

Nesta entrevista, que ele me concedeu após a Conferência "30 anos de Aids e os desafios políticos da epidemia no Brasil e no mundo", realizada no Instituto de Medicina Social (IMS/UERJ) no dia 11 de outubro, o antropólogo e presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) fala sobre o status atual do Programa Nacional de Aids, da epidemia no mundo em tempos de crise internacional, e como o governo Dilma tem lidado com a questão: “O Programa de Aids brasileiro, que outrora teve um papel de liderança em escala global, encontra-se em pleno declínio, e isso é preocupante. O Brasil abandonou seu protagonismo na política de resposta frente à Aids", avalia.

A Aids foi muito debatida e problematizada, especialmente nas duas primeiras décadas após seu surgimento. Trinta anos depois, a mobilização social e política contra a doença parece estar estagnada. Pode-se dizer que ela saiu de moda?

De certa forma, sim. Certamente, muito da energia ativista dos anos 1980 e 1990 está bem menor hoje em dia. Em alguns casos, essa energia está sendo canalizada para outras questões afins. Nos anos 1990, pessoas LGBT tinham muito mais probabilidade de entrar na mobilização da Aids. Hoje em dia, com o crescimento do movimento LGBT e o aumento de suas organizações, as pessoas estão migrando para este movimento. O esvaziamento do campo da Aids aconteceu porque ficamos acomodados, de certa forma. Achamos que tínhamos conseguido montar uma estratégia de controle muito boa e que isso era uma batalha vencida. Assim, ficamos menos atentos, menos vigilantes.

A doença deixou de fazer parte da agenda do movimento LGBT?

Eu diria que o movimento LGBT está fazendo muito menos do que deveria neste campo. A Aids é uma questão quase inexistente no Plano Nacional de Direitos LGBT. Ela aparece apenas duas vezes, timidamente, o que é uma pena, por que muita coisa ainda precisa ser feita. Está certo que a Aids não é uma epidemia que diga respeito somente aos homossexuais. Ela atinge a todas as pessoas, mas continua a ter um impacto muito grande nas pessoas homossexuais, especialmente entre os gays e as travestis. Então, dizer que não se trata de uma epidemia estritamente gay não significa dizer que os gays deveriam se despreocupar. É uma agenda que deve ser reincorporada, pois não está sendo priorizada pelo movimento.

O que o senhor acha que se deve fazer para a questão voltar a ocupar o espaço que sempre ocupou?

É preciso repolitizar a Aids, isto é, voltar para as ruas, trazer o tema novamente para a arena de debates. A tendência atual é que instituições oficiais e governamentais ou atores da sociedade civil tratem a epidemia como uma questão meramente técnica. Mas não é. É sempre uma questão política, tudo que tem a ver com programas de Aids tem a ver com política. Em 1996, tínhamos a certeza da eficácia de tratamentos antirretrovirais. Dezesseis anos depois ainda não conseguimos garantir acesso aos medicamentos para todas as pessoas no mundo que precisam, por causa de barreiras políticas. Então, todas as questões que parecem ter soluções técnicas dependem de política.

E todas as políticas públicas precisam ser trabalhadas para ter o tipo de resultado que desejamos. É preciso debater quais são as políticas que queremos e como iremos construí-las. Foi só por causa de uma ampla aliança entre diversos movimentos sociais (da reforma sanitária, homossexual, feminista, ativistas soropositivos) que conseguimos por em prática programas e políticas progressistas frente à epidemia de Aids no Brasil. Isso foi uma grande conquista. Mas para manter esta perspectiva progressista baseada no respeito aos direitos humanos e na justiça social, é preciso recriá-la todos os dias. É importante ter isto em mente na medida em que a Aids, em alguns setores, ficou banalizada. Temos que voltar a politizar a epidemia.

O senhor diria que a introdução das terapias antirretrovirais combinadas, em 1996, além de possibilitar que as pessoas soropositivas vivessem mais, trouxe também uma ideia de estabilização e conseqüente banalização da epidemia? Podemos falar que houve aí um bônus e um ônus?

Certamente. Por um lado, havia muito mais ênfase na mudança de comportamento para reduzir riscos antes da era dos antirretrovirais. Em diversos lugares do mundo, com o acesso a esses medicamentos, a Aids passou a ser vista como uma como uma doença crônica, menos preocupante. Algumas pessoas passaram a encará-la como uma DST qualquer, e abandonaram os meios de prevenção, como a camisinha. Pensaram: “Se nos infectarmos, temos tratamento”.

É uma visão restrita das coisas, afinal, ninguém quer viver com doenças crônicas que são possíveis de evitar. Não é legal tomar remédios para o resto da vida, seja para diabéticos ou soropositivos. Isto tem efeitos negativos na qualidade de vida, além de custos altos para a pessoa e para o Estado. É uma complacência contra a qual precisamos lutar.

O que se pode fazer para reverter isso?

Mobilização política. Como disse anteriormente, é necessário repolitizar a questão da Aids dentro das ONGs, da sociedade civil e do governo. O governo tem a obrigação de melhorar as campanhas. O que aconteceu no último carnaval, com a retirada da campanha publicitária voltada para população LGBT, foi um retrocesso muito grande.

A sociedade civil, nos anos 1990, agia com mais ousadia. Havia um ativismo cultural tentando esticar os limites. Eu acho que a sociedade civil tem ficado menos ousada, e mais acomodada.

Como avalia atualmente o Programa brasileiro de Ais, que se tornou referência no mundo desde seu início?

Desde 1998, o Programa tem sido referência, muitas vezes chamado de programa modelo. No entanto, temos visto que o programa tem prioridade menor na pauta do atual governo, se compararmos com os governos de Fernando Henrique Cardoso e de Lula. Acho que a Aids tinha prioridade maior, recebendo mais atenção dentro do Ministério da Saúde, dentro da própria Presidência. Não temos visto isso no governo Dilma, o que faz com que o programa seja menos pioneiro. Novas questões têm surgido, como as novas tecnologias de prevenção. Mas não vejo o governo debatendo essas questões emergentes.

Que outras deficiências o senhor vê no programa?

A incorporação de questões de Aids dentro do Sistema Único de Saúde. Durante muito tempo, o programa de Aids foi um programa muito vertical, recebendo muitos recursos adicionais através dos empréstimos do Banco Mundial e de outros doadores. Isso foi muito criticado.

A longo prazo, não há outro caminho que não seja integrar a Aids completamente ao SUS. Eu acho que muitas das dificuldades do atual momento – como, por exemplo, o fornecimento dos medicamentos que às vezes é interrompido – refletem a dificuldade de fazer a Aids funcionar dentro do SUS. Isso vem também da própria dificuldade de se fazer o SUS funcionar. Não é culpa de pessoas específicas, dos gestores, é um desafio que o Brasil tem hoje em dia: viver o princípio da integralidade centrada no SUS e integrar a Aids a ele.

Acho muito improvável que no futuro vamos ter os recursos adicionais que tínhamos durante os anos 1990 e na primeira metade dos anos 2000, como os recursos advindos do Banco Mundial. Isso está sendo reduzido. A crise financeira mundial está dificultando tudo. Os países ricos que financiam os empréstimos não têm dinheiro para suas próprias necessidades. Quando há escassez, eles ficam mais conservadores em relação às políticas de cooperação internacional.

Com a mudança na geopolítica mundial, qual o papel dos países emergentes – como Brasil e Índia – em relação á saúde global?

Países como Brasil, Índia, China, Rússia e África do Sul têm um papel absolutamente fundamental. O Brasil, em particular, escolheu a saúde como uma área onde queria agir no palco global. E foi um protagonista em propor políticas de Aids mais progressistas. Representou um contraponto ao conservadorismo dos EUA durante o governo Bush. Por exemplo, nas negociações sobre Doha (2001), o Brasil foi um ator fundamental na diplomacia de saúde global. Avançou várias causas, como o acesso a medicamentos mais baratos. Mas, no geral, não tem sido uma prioridade a questão da Aids nos fóruns internacionais.

A que atribui o fato de a política de Aids ter deixado de ser prioridade no atual governo brasileiro?

No nível doméstico, a minha leitura é muito clara: tem-se tentado apaziguar e satisfazer a bancada evangélica e a Igreja Católica, enfim, as forças conservadoras religiosas que podem gerar votos. É política pura e simples. Atribuo também à domesticação dos movimentos ativistas pelo governo, isto é, ao fato de o governo ter cooptado boa parte dos ativistas que fizeram parte do movimento da Aids, incorporando-os em cargos técnicos. Isto quer dizer que o governo já tem os votos dos setores interessados nas questões de Aids e direitos sexuais. Por causa deste movimento de agradar aos setores religiosos, o governo está deixando de lado a tradição de patrocinar políticas progressistas com relação à Aids, e aos direitos sexuais e reprodutivos.

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